Todo movimento social é retratado por grupos que muitas vezes são incentivados, representados e “movidos”, particularmente, por alguém que toma aquela causa para si, não por egoísmo, mas por aceitar o desafio de defender ideais, papéis sociais, grupos excluídos e vulneráveis.
No movimento LGBTQIA+ no mês voltado para o orgulho gay, celebrado em 28 de junho, a revista Vila Morena destaca a figura da professora e jornalista Sara Wagner York, que nessa entrevista conversa sobre sua atuação importante pelos direitos dessa comunidade tão em evidência ultimamente, justamente por necessitar cada vez mais de atenção, proteção e justiça. A jornalista decidiu que venceria todas as barreiras por meio dos estudos, como revela nessa conversa.
Sara Wagner York ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior é pai, avó e apresenta-se como Travesti da/na Educação – em razão da decisão judicial (de 2017). É ainda mestra em educação, especialista em gênero e sexualidades, jornalista, doutora em educação pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, além de coreógrafa e biomédica. Sara Wagner trabalha também com enfrentamento e discrepâncias de informações para/com, e entre, pessoas trans e cisgêneras.
Vila Morena – Sara Wagner York, você sofreu muito ou ainda sofre para chegar aonde você chegou? Como foi superar cada degrau da transfobia?
Sara – Sim, eu sofri — e continuo enfrentando desafios — para chegar onde estou. Sou uma travesti de 50 anos, “com/vivendo” com estigma HIV há mais de três décadas, e ter sobrevivido a tudo isso já é um ato político. Os degraus da transfobia não são apenas sociais, são institucionais, familiares, acadêmicos e, às vezes, internos. Para superá-los, precisei criar alianças afetivas, desenvolver coragem epistêmica e me agarrar à educação como uma ferramenta de emancipação. Cada conquista foi uma travessia: com dor, mas também com muito amor próprio e rede de apoio.
Vila Morena – A luta do movimento LGBTQIA+ tem alcançado conquistas satisfatórias ou ainda há muita dificuldade em ter direitos adquiridos?
Sara – Há conquistas, sim. Mas elas ainda são fraturadas, frequentemente atacadas e, muitas vezes, não chegam aos territórios mais vulnerabilizados. A mera conquista formal de um direito não garante sua efetivação. O Brasil ainda é um país em que o direito de existir com dignidade precisa ser reafirmado todos os dias. E o movimento, muitas vezes, precisa resistir mais do que celebrar.
Vila Morena – O Estado, como poder constituído, tem atendido de maneira satisfatória as pautas da comunidade?
Sara – Não. O Estado brasileiro historicamente negligencia as pautas LGBTQIA+, e quando atua, muitas vezes o faz de forma fragmentada ou burocratizada. As políticas públicas para a população trans e travesti ainda são tímidas, pouco orçamentadas e desarticuladas entre as esferas federal, estadual e municipal. A cidadania plena ainda é um sonho distante para nós.

Vila Morena – Há uma letra da sigla LGBTQIA+ que mais vive exposta ao risco social e à violência?
Sara – Sim. As pessoas trans e travestis continuam sendo as mais expostas à violência física, institucional, escolar, afetiva e simbólica. Somos os corpos mais assassinados, mais desempregados, mais expulsos das famílias e das escolas. A transfobia é estrutural e ainda naturalizada no Brasil.
Vila Morena – Ao longo do seu trabalho, o que você toma como uma conquista que parecia impossível?
Sara – Entrar na universidade e depois virar professora e pesquisadora travesti, respeitada por meu trabalho intelectual, científico e político. Cresci ouvindo que meu corpo era inviável, que minha existência era uma aberração. Hoje, produzo conhecimento a partir da minha existência dissidente — e isso, para mim, é revolução.
Vila Morena – O acesso à universidade pela pessoa trans e travesti ainda é algo que está longe do ideal?
Sara – Infelizmente, sim. O acesso tem melhorado com as políticas de cotas específicas, mas ainda é muito desigual. A permanência, então, é um desafio ainda maior. Falta acolhimento institucional, suporte psicológico, bolsas, segurança, nome social respeitado. As cotas não são o problema — a ausência de estrutura para garantir que sejamos tratadas com dignidade é que é o verdadeiro gargalo.
Vila Morena – O Brasil é o pior País para a pessoa LGBTQIA+ viver?
Sara – Infelizmente, sim. Lideramos o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans e travestis há mais de uma década. Isso diz muito sobre a necropolítica vigente, que escolhe quem pode viver e quem pode morrer. Vivemos em alerta constante.
Vila Morena – Por que a pessoa trans e travesti é a que mais vive a falta de acesso, principalmente à educação?
Sara – Porque somos expulsas da escola desde cedo, vítimas de bullying, violência institucional e negligência. A escola reproduz o que há de pior na sociedade quando não está preparada para nos acolher. Não é só falta de acesso: é expulsão sistemática.
Vila Morena – Quais são os avanços e as conquistas que ainda precisam ser alcançadas com urgência?
Sara – Conquistas: nome social, cotas, avanços no STF e nas universidades públicas. Mas ainda precisamos de políticas interseccionais robustas, de proteção à infância trans, de acesso à saúde sem patologização, de moradia, emprego formal, renda mínima e educação inclusiva desde a base. Sem isso, nossos corpos seguem sendo descartáveis.
Vila Morena – É satisfatória a política pública atual para a comunidade LGBTQIA+?
Sara – Não. Há intenções, mas faltam orçamento, continuidade e execução. Uma política pública só é eficaz quando sai do papel e chega na ponta — no posto de saúde, na escola, no CRAS, na UPA, na universidade. E ainda estamos longe disso.
Vila Morena – Quem seria a maior barreira para a pessoa trans ou travesti ter acesso à cidadania plena?
Sara – A cisgeneridade normativa, que nos recusa como sujeitos legítimos. A maior barreira é o “cis-tema”, que opera pela exclusão, pelo medo e pela manutenção de privilégios cisgênero-heteronormativos. É um sistema que nos trata como exceções, quando somos parte da humanidade.
Vila Morena – Essa exclusão da educação é pessoal ou estratégica?
Sara – É estratégica. A exclusão educacional de pessoas trans e travestis não é acidental. É uma forma eficaz de manter essas pessoas longe da política, da produção de saber, da economia e dos espaços de poder. É um projeto político de apagamento.
Vila Morena – A transfobia escolar é recorrente? Como você analisa essa situação?
Sara – É cotidiana. A escola se mostra despreparada, e muitas vezes cúmplice, da violência que se abate sobre estudantes trans e travestis. Falta formação docente, protocolos de acolhimento, escuta e políticas institucionais claras. Quando a escola não protege, ela adoece.
Vila Morena – As famílias são culpadas ou vítimas desse sistema?
Sara – As famílias também são vítimas de uma estrutura moralizante, religiosa e patriarcal, que as leva a crer que amar seus filhos e filhas LGBTQIA+ é um erro. Muitas reproduzem o que aprenderam. Mas é urgente que entendam que amar pode ser um gesto revolucionário.
Vila Morena – A prostituição ainda é o caminho mais imediato para a pessoa trans e travesti?
Sara – Infelizmente, sim. Porque o trabalho formal nos é negado, a escola nos expulsa, o sistema de saúde nos marginaliza. Mas é importante dizer: não culpamos quem sobrevive, culpamos o sistema que não oferece alternativas. O problema não é a prostituição em si, mas a falta de opções.
Vila Morena – Entre crianças, jovens, adultos e idosos trans e travestis, quem está mais vulnerável?
Sara – Todas as faixas etárias enfrentam riscos. Crianças trans vivem apagamento, jovens enfrentam violência escolar, adultas encaram desemprego e violência urbana, e idosas trans são completamente invisibilizadas pelas políticas públicas. Não há políticas robustas por faixa etária — e isso é gravíssimo.
Vila Morena – A violência contra pessoas trans e travestis tem crescido?
Sara – Sim. As estatísticas de violência são alarmantes, e os dados reais devem ser ainda piores, pois há muita subnotificação. A violência não é apenas física, mas simbólica, institucional e cotidiana. E ela cresce porque há impunidade e naturalização.
Vila Morena – Por que as pessoas trans e travestis sofrem tanto com autoestima?
Sara – Porque fomos ensinadas desde cedo que nosso corpo era errado, que nossa existência era um erro. As políticas públicas ainda falham em promover nossa humanização, visibilidade positiva e orgulho de ser quem somos. Autoestima é um direito negado para corpos como o nosso.
Vila Morena – Essa violência afeta o emocional ou todas, todos e todes são fortes o suficiente?
Sara – Somos fortes, sim. Mas ninguém deveria ser forçada a ser forte o tempo todo para sobreviver. A violência adoece, cansa, exaure. É por isso que precisamos de políticas de cuidado, de escuta, de saúde mental, de pertencimento. Resistir não pode ser nossa única opção.
Vila Morena – Dias melhores virão?
Sara – Eu acredito que sim — se continuarmos a incomodar, a resistir, a estudar, a ocupar, a amar. A mudança vem com os corpos dissidentes em todos os espaços. Dias melhores virão, porque nós os faremos nascer.
Vila Morena – Como você avalia o momento atual para a comunidade LGBTQIA+?
Sara – Estamos em disputa. Há avanços legislativos e simbólicos, mas também muitos retrocessos. Vivemos em um país onde nosso direito de existir ainda é pauta de debate. A conjuntura é tensa, mas também é fértil para reorganização, para coalizões e para luta. Estamos vivas — e isso já é um levante.
Um movimento que mistura história, exemplo, amor, ódio, força e política
O dia 28 de junho é especialmente marcado como o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, comemorando a Revolta de Stonewall de 1969, um marco no movimento moderno pelos direitos dessa comunidade, despertando um período de crescente ativismo e visibilidade para a comunidade.
Essa data não é aleatória, nem mesmo o nome do bar e toda circunstância é fruto de alguma imaginação fértil. Nesse dia, frequentadores do famoso bar da comunidade gay na região de Manhattan, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, de nome Stonewall Inn, revelaram-se cansados da truculência de policiais ao realizarem batidas no local. Os agentes usavam muita violência e humilhação contra os homossexuais, trans e travestis, principalmente, que se encontravam no estabelecimento ou em outros semelhantes, para curtir a noite e a vida. Os guardas invadiam o estabelecimento, ameaçando e espancando funcionários e clientes, que eram colocados formando filas para que a polícia pudesse prendê-los.
Diante disso, exatamente em 28 de junho de 1969, essas pessoas deram um basta a tudo isso e se rebelaram promovendo uma revanche. Clientes e curiosos enfrentaram os agentes e a consequência foi uma confusão que durou dias e acabou resultando em uma rebelião conhecida atualmente como a “Revolta de Stonewall”.
Por isso, esse mês, para evidenciar a existência dessa comunidade, o mundo inteiro realiza eventos voltados para dar visibilidade aos membros de cada letra do movimento LGBTQIAPN+. Bandeiras são hasteadas e passeatas são realizadas promovendo debates e buscando conscientizar autoridades como o legislativo e o judiciário, principalmente, em voltarem a atenção a essa parcela da sociedade, e assim, adotar leis e medidas que lhes garantam cidadania e direitos; não apenas deveres, porque esses, eles já correspondem.