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João Carlos Pedroso

Alô, alô marciano

Aventuras de um alienígena perdido no espaço feminino

O lugar de fala evidentemente não é meu. Mas fui convidado por amigos a ocupar esse espaço temporariamente e não costumo dizer não para a amizade. Então escolhi a postura inca-venusiana. Porque um homem falar sobre os direitos da mulher é a mesma coisa que um alienígena discursar sobre direitos humanos. O que, de um estranho ponto de vista, pode ser bom.

À distância, obviedades surgem mais óbvias, e absurdos ganham mais tempero de nonsense. Porque os direitos da mulher são (ou deveriam ser) simplesmente os direitos humanos, aqueles consagrados pelo tempo e pelas organizações mundiais – e negados sistematicamente aos grupos sociais alijados do poder. Em especial a metade da população mundial que não possui um pênis.

Então digamos que nosso serzinho verde com antenas receba uma cartilha, daquelas bem básicas, com uma listinha de Direitos Humanos: Direito à vida, à integridade física e à segurança pessoal. Direito à igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres. Direito à dignidade. Direito à liberdade de expressão.

Educação, saúde, liberdade, respeito, tudo incluído no pacote. Ariel (isso, nosso alienígena cansou de ser mais um na multidão e ganhou nome ambivalente, que serve tanto para sereia quanto para craque argentino) dá uma olhada naquilo e pensa: “Bom, apesar de tudo ser meio óbvio demais, são boas ideias”.

Pois é, Arielzinho (pronto, já pegamos intimidade...). Só que não funciona. E é ao mesmo tempo muito fácil e muito difícil explicar os motivos. Primeiro, bem lá atrás, os homens eram quase macacos e, como os machos de praticamente todas as espécies, mais fortes fisicamente que as fêmeas.

Por isso, saiam para caçar enquanto elas ficavam nas cavernas e, com isso, foram acumulando direitos e poderes, como arrastar suas companheiras pelos cabelos e mandar naquela bagunça toda. “Mas isso era bem primitivo, com o tempo melhorou, não?” Não, Ariel. Piorou. Desceu a níveis tão absurdamente desumanos que só não são esquecidos porque coisas assim, barbaridades dessa lavra, são combustível para a revolta e a necessária revolução.

Através dos séculos e sob formas cada vez mais violentas e absurdas, o arrastar pelos cabelos se transformou em prisão, fogueiras, acusações de bruxaria e histerismo, violência mental, sexual e doméstica (que inclui as duas anteriores, invariavelmente), violência nos ambientes de trabalho, cassação de liberdades, injustiça salarial, invisibilidade política. Praticamente uma tentativa (por vezes perto de ser bem-sucedida) de uma singular espécie de genocídio. De gênero. “Mas não deu certo, não é mesmo?” Não, apesar de ter deixado uma lista sem fim de vítimas e mártires ao longo dos séculos, não deu certo. O motivo: a “fêmea da espécie, além das potencialidades que todo ser humano deveria ter (alguns parecem carecer de algumas), tem a capacidade vital como sua força, senão exclusiva, extremamente.

Não apenas a óbvia, de gerar e carregar sucessores. Mas uma outra força inusitada que provavelmente vem de algo como a igualmente estranha mania de ter fé na vida. “Você sabe que, na verdade, não explicou nada, não é mesmo?” Sei, Ariel. Porque para mim é tão difícil quanto para você entender como elas resistiram e resistem, viram a cada dia (ou século) uma ou duas peças do jogo e continuam avançando, com ou sem medo, mas sem se render nunca e retroceder jamais.

Assim como você, Ariel, sou de outro planeta. Elas apenas me permitem vagar por aqui, apesar de tudo de errado que fiz (ou meus “iguais” fizeram) com ou contra elas. Apesar de ainda relativamente poucos portadores de pênis perceberem o tamanho desse privilégio, dessa concessão, dessa caridade, dessa bênção (se você for religioso, mas isso é igualmente complicado de explicar). Apesar…

Você pode voltar para sua casa e continuar tentando entender o universo. Vou ficar aqui, enquanto elas permitirem (se permitirem), me esforçando para coabitar com os “iguais” que não são meu espelho. Só porque isso inclui conviver com as “diferentes” que são o sabor e o sentido da vida nesse planeta. Tentando entender. E ser digno delas.

Boa viagem. Para nós.

João Carlos Pedroso é jornalista carioca com mais de 35 anos de atividade e passagens por veículos como O Globo, Jornal do Brasil e O Dia, entre outros.